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03 fevereiro 2007

Há coisas que nos fazem pensar

"O doente do quarto 129

Quando começamos no jornalismo vivemos obcecados pelos factos, pelas notícias. Depois percebemos que o melhor que pode acontecer a um jornalista é ter uma boa história para contar. E eu tinha uma grande história: um homem que teve um acidente de trabalho ficou paraplégico e vive há 34 anos num hospital português. Embora tivesse ficado acamado com apenas 18 anos, continua a receber visitas da terra. Por vezes, até se organizam excursões. O acidente roubou-lhe a juventude, uma futura família e a possibilidade de ver o mundo em directo. A televisão é a sua ligação à realidade fora das paredes do hospital; o Benfica, o único prazer. Mas o doente do quarto 129 não perdeu a vontade de viver. Mais: continua a preocupar-se primeiro com os outros e só depois com ele próprio.

Um dia a equipa do hospital resolveu fazer uma “vaquinha” e comprar um leitor de vídeo para oferecer ao doente mais antigo da casa – já sobreviveu a vários directores. Ficou muito emocionado, mas guardou-o para oferecer aos pais. “Ainda não tinham”, justificou-se.

A vida do doente do quarto 129 é uma daquelas histórias com muitas histórias dentro. Queria tanto contá-la! Pedi as devidas autorizações e toda a gente estava de acordo com a minha visita ao hospital. Todos menos o doente do quarto 129. Apelei aos mais variados recursos: médicos, enfermeiros, irmãos. E nada.

Mas um repórter que se preze não desiste à primeira nega, nem à segunda, nem... enfim, não desiste. Andei a adiar porque não queria ser mais um problema na vida do doente do quarto 129.

Finalmente, ganhei coragem. Entrei no quarto e tratei logo de explicar ao que vinha, para logo acrescentar que me iria embora imediatamente se fosse essa a sua vontade. Respondeu-me com um forte abanar de cabeça. Nem pensar. Fez questão que me aproximasse. Corte de cabelo impecável, boa aparência, jovem para os seus 52 anos. Na garganta, um tubo que o ajuda a respirar. O diálogo não é fácil. Mas o doente do quarto 129 não se importa e conversa amenamente comigo. Da sua paixão pelo Benfica, que já lhe valeu a visita de várias estrelas ao hospital; da sua concordância com a eutanásia, embora se recuse a imaginá-la para si próprio; da dedicação da equipa de enfermagem, que é como uma família; das várias gerações de técnicos que já passaram por si – alguns até lhe entregavam os filhos enquanto iam trabalhar; da solidariedade de amigos e família que tem sentido durante todos estes anos.

Só havia um senão: o doente do quarto 129 não queria dar entrevistas. Quando me despedi perguntei-lhe se poderia voltar. Ainda não tinha desistido de o convencer. Respondeu-me que sim, com um sorriso.

Nessa noite jogava o Benfica. Antes de me deitar quis saber – coisa inédita para mim – o resultado do jogo. Os encarnados tinham ganho. Ainda bem! Pelo menos agora quando me falam no Benfica já me diz alguma coisa.

Saí do hospital convencida que iria voltar para tentar convencer o doente do quarto 129 a mudar de ideias quanto à entrevista para a VISÃO. E fiquei a pensar como seria a próxima visita. Engraçado o pensamento, não é? Consegue levar-nos, com o nosso consentimento, para onde não queremos: a grande história do doente do quarto 129 é que, apesar de só conseguir mexer a cabeça e de estar internado num hospital há 34 anos, pôde decidir – contra tudo e contra todos – que não queria dar entrevistas."

in Visão "PELA SUA SAÚDE" - Isabel Nery

2 comentários:

GM disse...

É aquilo que eu sempre digo, nós temos uma vida optima e só damos por isso quando perdemos!!!
Estas pessoas que quase tudo perderam, são aquelas que mais alegria têm de viver, e vivem para os outros!!! Muito bom!

McBrain disse...

No que diz respeito ao poder do doente do quarto 129, ele não seria nenhum se a jornalista tivesse desrespeitado o Código Deontológico..... saudações à Isabel Nery por ter sido recta!

Quanto ao comentário do GM: a vida é dele. Há exemplos contrários, como é o caso de Ramon San Pedro, que viveu assim durante dezenas de anos.
A propósito disso... no post original referes "o poder de um tetraplégico em recusar entrevistas", mas posso falar também na impotência de uma pessoa assim em colocar um fim à sua existência se assim o desejar. Qualquer pessoa sã o poderá fazer... quanto mais doente (no caso específico de um doente tetraplégico), mais impotente.... não deixa de ser paradoxal!